segunda-feira, 26 de julho de 2010

Equívocos















Uma palavra, um gesto, uma expressão e até uma vírgula bastam para criar um mal-entendido; zangas sem fim; ódios para sempre; amores desfeitos; desencontros eternos, e, tudo, quantas vezes, por causa de um equívoco.

Estes desenhos feitos em contextos e em tempos diferentes nasceram do vício de riscar, riscar, riscar, ou seja: desenhar, desenhar, desenhar sempre e muito em todo o lado, a todo o instante, tendo por base momentos felizes ou angústias momentâneas. Indiferente aos caprichos de uns e outros; às análises superficiais ou mais atentas; às confusões e aos relacionamentos humanos que valem o que valem, faço o meu caminho com as armas que tenho. Aqui e agora limito-me a mostrar a minha obra pictórica que é apenas a expressão do meu mundo e da minha sensibilidade, com equívocos, obviamente. História da Minha Pintura.

Recordo hoje as palavras de Thomas Paine:

“O facto de continuarmos a pensar que uma determinada coisa não é errada dá-nos uma aparência superficial de estarmos certos.”

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Direito à diferença



Somos todos iguais. Somos todos diferentes. Sendo iguais devemos ter direitos e obrigações semelhantes. Sendo diferentes somos naturalmente tratados de modos desiguais. Depois há as diferenças que contam mais que outras. Coisas dos tempos. De cada época. De cada contexto. E porque assim acontece, não nos podemos esquecer que a diferença é uma característica que nos singulariza e nos distingue de todos os outros, porque cada um de nós é único. Para o melhor e para o pior. Hoje e sempre.

Esta pintura é uma representação de um momento de carinho, de afecto, longe dos juízos críticos comportamentais do certo e errado, do igual ou do diferente. O relacionamento é um conjunto de normas que, como se sabe, mudam muito todos os dias. Aqui o que se procura mostrar é apenas mais um gesto, dos muitos que formam esta selva de convenções, muitas vezes tão cínicas e impróprias. Como pintor apenas gosto de registar o lado bom da natureza humana. Por enquanto. História da Minha Pintura.

E vos deixo com a voz de Edith Piaf e “L´Hymne à l´amour”.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Os outros






Os outros: admiramos, ou invejamos; amamos ou rejeitamos; adoramos ou ignoramos; gostamos ou odiamos. É neste jogo de sensibilidades que analisamos os outros e fazemos o nosso caminho: próximo de uns, distante de outros. E os outros são uma parte de nós - do mesmo sangue, da mesma luta, do mesmo destino.

Este trabalho ainda está apenas no início. Primeiro o desenho com a divisão do espaço e a colocação dos diferentes elementos de acordo com a sua importância no contexto temático. É sempre assim que começo. Mas há um antes. Antes significa ler livros, ver obras de outros mestres (tenho muitos pintores que me seduzem pela singularidade, pela mestria, pela genialidade) e pensar muito sobre o que fazer para acrescentar algo de novo. E esse é o problema maior. É tão difícil criar formas que sejam apelativas num mundo já tão carregado de imagens tão iguais umas às outras. Mestres como Lucian Freud, Balthus , Hockney e também as novas tecnologias na arte são alvo do meu apreço. História da Minha Pintura.

Recordo hoje as palavras de Benjamim Franklin:
“Seja cortês com todos, sociável com muitos, íntimo de poucos, amigo de um e inimigo de nenhum.”

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ponto final








Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida. Acabaram estas crónicas diárias. Agora serão apenas semanais. Muito ficou por mostrar do meu trabalho pictórico. Trinta anos a fazer e a desfazer é muito tempo. Não mostrei outro tanto do que tem sido este caminhar em busca de novas imagens. Esculturas, serigrafias, desenhos e muita, muita pintura. Não tenho registo de peças que fiz e que perdi o contacto. Acontece muito, no mercado da arte, porque quem vende nem sempre gosta de dizer, onde andam e a quem pertencem as peças -outras histórias e outros interesses neste mundo de conquistas e derrotas. Até com a arte e na arte muito há a contar. Pois claro.

Agora é chegado o momento de apenas pintar sem pensar em mais nada. É o meu retiro anual. É assim todos os anos. É o meu refúgio de tudo e de todos. Irei estar quase que incomunicável. É chegado o tempo de "religiosamente" trabalhar não pensando, não querendo pensar em devaneios e distracções vãs. O trabalho, qualquer trabalho exige tempo e rigor. É o que me espera agora neste caminhar de tintas, telas e desejos criativos. História da Minha Pintura.

Recordo hoje as palavras de Georges Rouault:

“Para mim pintar é uma maneira de esquecer a vida. É um grito na noite, um riso estrangulado.”

quinta-feira, 15 de julho de 2010

A arte está em todo o lado



“…Dispor os móveis numa sala é fazer arte. Ou olhar uma paisagem, pôr uma flor na lapela, ou num vaso. Escolher uma gravata, uns sapatos. Provar um fato. Pentear-se. Fazer a barba ou apará-la quando comprida. Todas as coisas de cerimónia têm que ver com a arte…”

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3'


Neste passeio, pelos cantos da casa, as cores e as formas dos objectos jogam entre si num bailado estético em que a substância de cada um se dilui. O que se destaca é, em primeiro lugar, o impacto formal e depois, se vontade houver, a descodificação de cada peça. Um livro exige tempo e interesse pelo seu conteúdo; uma pintura aparentemente é de fácil leitura, embora esconda muitas interpretações que só são legíveis se se olhar com olhos de ver. É pois neste intercâmbio de olhares, contemplações e diálogos que vivo da arte e com a arte. História da Minha Pintura.

E recordo hoje as palavras de Federico Fellini:

“Um escritor, um pintor, que conseguiram fixar numa página ou num quadro um sentimento das coisas do mundo, uma visão que durará para sempre, comunicam-me uma emoção profunda.”

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Bruxaria



“A palavra Bruxaria, segundo o uso corrente da língua portuguesa, designa as faculdades sobrenaturais de uma pessoa, que geralmente se utiliza de ritos mágicos, com intenção maligna - a magia negra - ou com intenção benigna - a magia branca. É também utilizada como sinônimo de curandeirismo e prática oracular, bem como de feitiçaria.”

In Wikipédia


Este é (na minha casa) um dos cantinhos onde, naturalmente, aparece o meu trabalho, aqui misturado com a simbólica bruxa checa. Não sou crente de coisa nenhuma. Acredito na ciência e, quando esta ainda não consegue explicar, é tudo uma questão de tempo. É mais saber que explica os mistérios da vida. As dúvidas, as incógnitas, os intrincados fenómenos não passam de ignorância; de incapacidade para descobrir cientificamente a verdade das coisas. De todas as coisas. O resto é puro oportunismo. O tempo, sempre o tempo - que é um acumular de mais saber -, traz a explicação científica do feitiço, da magia, ou do rito mágico. Traz Sempre. Sempre.

Estas duas pinturas foram feitas após uma viagem que fiz a Itália e que me fascinou. Recordo as cores ocres, os castanhos, a arquitectura e os espaços que, aqui, nestas pinturas acabaram por aparecer, pela influência que tudo me provoca, quando olho com olhos de ver e de pintor. História da Minha Pintura.


Recordo hoje Leonardo da Vinci:

“Quem pensa pouco, erra muito.”

terça-feira, 13 de julho de 2010

Amores de estudante



Canção do Amor-Perfeito
Eu vi o raio de sol
beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
o anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
sobre o mar largo
e ouvi cantar as sereias.
Longe, num barco,
deixei meus olhos alegres,
trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
gostaria que ficasses,
mas, se fores, não te esqueço.

Cecília Meireles, in 'Retrato Natural'



Esta imagem procura mostrar (como tenho feito ultimamente) o espaço privado e a inserção da pintura no contexto do lar. Este meu trabalho, de formato quadrangular, faz parte da série representando contextos juvenis. Aqui pode perceber-se a importância da escala e da relevância que as peças têm mercê das suas dimensões, porque independentemente da valia ou não, ninguém fica indiferente ao tamanho das peças, donde procuro criar obras que se destaquem, daí a minha preferência pelo grande formato. História da Minha Pintura.

E vos deixo com a Tuna Universitária do Porto e “Amores de Estudante”.


segunda-feira, 12 de julho de 2010

O teu riso



O teu riso

"Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso..."


Pablo Neruda


Felizmente. Acabou o Mundial de Futebol. Não se falou de outra coisa, nesta quinzena. Hoje lembrei-me de Pablo Neruda. Faria anos se fosse vivo. Ficou a poesia que revejo, de vez em quando, porque vejo passar amores, desejos e paixões. Como todos.

Enquanto pinto faço muitas paragens procurando ver de longe e com serenidade o que as cores e as formas geram. Aqui sentado, observo e penso. Penso muito. Como todos os que olham esta passagem chamada vida. Vejo na junção das cores harmonia ou não; vejo nas formas combinações correctas ou deploráveis. Em suma: vejo e não vejo. Como toda a gente.

Esta imagem mostra mais um trabalho que, como todos os outros, é uma visão deste nosso tempo, onde habita tudo num conflito de interesses e de jogos virtuais. Cores fortes, sombras e luzes numa representação espacial de diferentes planos constituem esta amálgama pictórica. História da Minha Pintura.

E vos deixo com a voz maravilhosa de Plácido Domingo

domingo, 11 de julho de 2010

Trabalho



Poeminha sobre o Trabalho

Chego sempre à hora certa,
Contam comigo, não falho,
Pois adoro o meu emprego:
O que detesto é o trabalho.

Millôr Fernandes, inPif-Paf


É aqui que tudo acontece, ou quase tudo. Longe vão os tempos em que os artistas vinham para a rua pintar, como acontecia no século XIX e XX. Hoje, apenas para turista ver, nas principais praças das capitais da Europa (é o que eu conheço melhor), se observa a feitura, sobretudo, de desenhos caricaturais, de uns pretensos artistas, perdidos no sonho da arte pictórica. O trabalho é feito na solidão e no silêncio das quatro paredes, apenas quebrado pelo aparecimento dos modelos ou da música. É assim todos os dias. Deve ser assim todos os dias. Se assim não for não há obra por muita visualização mediática que se queira. História da Minha Pintura.

E vos deixo com a música que me fascina e me acompanha na solidão do trabalho. Hoje lembrei-me de Bethoven e Fur Elise”.

sábado, 10 de julho de 2010

Espaço privado



Hoje, de novo, levanto o véu e vou mostrando pedaços de espaços privados. Hoje como nunca a privacidade é tão mundana. Hoje, uns cientes ou não do valor e do significado da vida privada, tudo fazem para a proteger ou, pelo contrário, a devassam. É neste limbo que procuro ir falando de mim e do meu trabalho. Para alguns é um caminho, como outro qualquer, de divulgação e promoção; para outros, ainda, é um olhar com julgamentos censórios. Afinal, nada é como dantes. A net mudou o mundo e, se nas aldeias todos sabem de todos, agora também na cidade todos conhecem todos, ou não vivêssemos na era da informação global. Para o melhor e para o pior.

Esta imagem procura, sobretudo, mostrar pintura, relacioná-la com o espaço e dar uma imagem das dimensões das peças. O impacto das obras pictóricas não depende somente do tamanho mas, sem dúvida, que ganha uma visualização e um alcance que o pequeno formato não consegue ter. Procuro, dentro das muitas limitações que o trabalho implica, pintar preferencialmente telas de grande formato. História da Minha Pintura.

E recordo hoje as palavras de Georges Braque:

“Na arte só uma coisa importa: aquilo que não se pode explicar.”

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Degrau a degrau



A vida é feita de etapas. Fáceis ou tortuosas. As (etapas) difíceis são conquistadas de degrau em degrau. É assim que saboreamos as nossas capacidades, e a determinação que impomos, no que fazemos. Depois é olhar e ver, com olhos de ver, o alcance dos desejos e das vitórias. Degrau a degrau.

Esta imagem pretende apenas contextualizar uma obra num espaço. Preferencialmente gosto mais de trabalhar em projectos de grandes dimensões, e, quando se trata de pintura, de longe, sou apologista das grandes telas. Aqui mostro um trabalho antigo que serve, agora, para exemplificar esta série, que é apenas uma viagem pelos meus espaços privados, ou seja, uma mostra do meu trabalho que é, naturalmente, uma parte significativa da minha vida, nos meus espaços familiares. História da Minha Pintura.

Hoje recordo as palavras de Henry Miller:

“A única disciplina que a vida impõe, se formos capazes de a assumir, é aceitar a vida sem a questionar.”

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Projecto de vida



Cada um concebe um desejo de vida. Sonhamos todos com o melhor que a imaginação alcança. Para uns é a liberdade; para outros a riqueza; outros ainda a felicidade; e muitos outros a saúde. Desejos e sonhos. Simplesmente uns plausíveis; outros nem tanto, e outros, ainda, pura fantasia. Projecto de vida é apenas um desejo com muitos sonhos e também muitas desilusões. Como tudo na vida.

Agora, neste momento, de tantas dúvidas (como sempre foi este andar por aqui) tenho um projecto de vida que é uma mistura de sonho, realidade e fantasia. O futuro começa sempre no dia seguinte. O dia seguinte poderá ser o expectável ou o cabo das tormentas. Pensando bem é o nosso dia-a-dia. Sempre previsível e, por vezes, bem diferente, ou não fosse este viver, um mar de dúvidas com encantos e desilusões. Todos os dias.

Esta fotografia retrata um projecto de vida em fim de ciclo. Agora é chegado o tempo do sonho, da fantasia e do desejo. Depois se verá. Por agora esperam por mim duzentas telas e cem aguarelas. Se forças houver e imaginação também, então nascerá qualquer coisa de mim, com sabor a liberdade e prazer sem fim. História da Minha Pintura.

Lembrei-me hoje das palavras de Jean Guéhenno, in “A Fé Difícil”:

“Vivemos uma vida, sonhamos com outra, mas a verdadeira é a que sonhamos.”

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Calor infernal



Agora é todos os dias o mesmo: calor infernal. De manhã pelo romper do dia se faz o que tem de ser feito. De tarde, os que podem fugir (do trabalho) procuram a sombra e o nada fazer, enquanto a temperatura não baixar. É assim por estas bandas. Como é bom o calor depois de tanta chuva e de uma invernia prolongada. É bom para quem pode saborear o que há para saborear com os excessos do tempo. O problema é sempre igual -os mesmos do costume, têm de fazer, quer queiram, quer não, esteja o tempo que estiver, mesmo com o calor infernal. Afinal, a igualdade é só para alguns. E as oportunidades também.

Estes trabalhos em aguarela fazem parte do meu modo de estar e ser. Dimensões pequeníssimas e grandes fazem o historial das minhas peças que têm sempre o mesmo objectivo: retratar um tempo e um modo de estar e sentir o mundo, independente dos julgamentos de valor, quer de uns, quer de outros e sobretudo indiferente aos tempos e às modas, porque a arte não deve nunca mover-se consoante os caprichos de quem manda. História da Minha Pintura.

Recordo hoje as palavras de Samuel Butler, in The Way of all Flesh”:

“Toda a obra de um homem, seja em literatura, música, pintura, arquitectura ou qualquer outra coisa, é sempre um auto-retrato; e quanto mais ele se tenta esconder, mais o seu carácter se revelará, contra a sua vontade.”

terça-feira, 6 de julho de 2010

Uma das minhas paixões






O calor aperta. A praia para os disponíveis chama como sempre. É o tempo dos banhos nas águas aqui frias, e, quentinhas do outro lado do mundo. Aqui, ao pé de casa, ficamos todos felizes, por estar fora de portas, saboreando a brisa, as cores e as novidades estivais. É assim todos os anos neste rectângulo peninsular. Ora bem.

Muitos artistas representam este período estival de acordo com o seu tempo e as suas gentes. Basta pensar em Almada, em Picasso para não falar noutros. Agora é o tempo dos passeios nocturnos saboreando a frescura esporádica do ar e a chegada dos calores que aquecem a alma e o corpo, tão propenso a aventuras e devaneios. Coisas da vida. Da boa vida.
Estas pinturas (já mostradas) fazem parte do meu percurso pictórico que é, naturalmente, um pouco de mim. Pintar é contar o que somos através de cores espalhadas numa superfície, em que formas compreensíveis ou não, indiciam aquilo que o artista sente. História da minha Pintura.

E vos deixo com a música de Beethoven, uma das minhas paixões.

http://www.youtube.com/watch?v=j_2sewSPKd8

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A parte invisível do visível




A Parte Invisível do Visível

A parte invisível do visível.
De resto conhecer mais o quê?
O Manifesto do Invisível.
Os lobos são a cabeça do anjo que não se vê.
Sangue no Focinho e Cobardia.

Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"

domingo, 4 de julho de 2010

Esta espécie de loucura



Esta Espécie de Loucura


Esta espécie de loucura
Que é pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confusão do pensamento,

Não me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haverá
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim não sei o que há

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

sábado, 3 de julho de 2010

A mulher mais bonita do mundo



A Mulher Mais Bonita do Mundo


estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.


José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Contemplo o que não vejo



Contemplo o que não Vejo
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O homem que contempla




O Homem que Contempla

Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas
que não sei suportar sem um amigo,
que não posso amar sem uma irmã.

E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.

Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anónimos.

Triunfamos sobre o que é Pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o Eterno nem o Extraordinário
serão derrotados por nós.
Este é o anjo que aparecia
aos lutadores do Antigo Testamento:
quando os nervos dos seus adversários
na luta ficavam tensos e como metal,
sentia-os ele debaixo dos seus dedos
como cordas tocando profundas melodias.

Aquele que venceu este anjo
que tantas vezes renunciou à luta.
esse caminha erecto, justificado,
e sai grande daquela dura mão
que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta.
Os triunfos já não o tentam.
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido
por algo cada vez maior.

Rainer Maria Rilke, in
"O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira